domingo, 26 de agosto de 2007

7

Madrugada. No ponto de ônibus três “mulheres” esperam o coletivo que vai para o subúrbio. Uma delas não é mulher, é um travesti indo embora mais cedo para casa. Está com dor de dente, não consegue se quer fazer oral. A outra é uma prostituta cuja menstruação desceu, também desistiu da noite de trabalho para evitar outra situação como a da última vez, o cara a fez lamber a camisinha suja de menstruação enquanto berrava – sua vadia porca lamba essa imundície. E a terceira é Maria Cecília que vai ficar muito famosa em breve, mas ela ainda não sabe de nada. A mais ingênua das três, está encostada na estrutura de concreto do ponto de ônibus, seu olhar vazio voltado para o nada, está muito cansada trabalhou até muito tarde, é domestica. Rolou um jantar na casa dos patrões, precisou ficar até o último convidado ir embora e até o último copo de cristal da coleção estar brilhando de volta ao armário. É solteira e mora com o pai. Seu corpo não é nada atraente, se bem que suas colegas de espera também não são grande coisa, mas estão vulgar e provocativamente vestidas e à noite todos os gatos são pardos, elas devem atrair aventureiros para as maravilhas sexuais que oferecem com seus corpos bem experimentados na arte de dar prazer. Maria Cecília, não. Nunca deu. Veste-se como uma crentinha virgem, seus vários quilinhos a mais não fazem seu corpo despertar desejo em quase ninguém, a não ser no sexagenário seu Manoel, porteiro do prédio em que trabalha e que mesmo não tendo mais uma ereção, como afirma, é um velhote tarado que gosta de dizer obscenidades como – meu pau não sobe mais menina, mas minha língua é tão grande que posso foder você com ela, veja – mostra uma gigantesca língua amarelada.

Um carro preto passa em alta velocidade, freia a ponto de cantar os pneus. Cheiro de borracha queimada. O motorista engata a ré do carro e volta cantando pneus, outra parada brusca em frente ao ponto de ônibus que as três estão. As quatro portas do carro se abrem quase que simultaneamente, de dentro saltam cinco rapazes gritando, pouco dá para se entender, um deles berra – “não deixa nenhuma vagabunda escapar”. Logo na primeira freada as duas profissionais do sexo abandonam o ponto. O travesti demora um pouco para partir em desabalada corrida para salvar a pele porque ao tentar tirar as sandálias de saltos finos altíssimos, foi pego pelos cabelos por um dos rapazes, um que está de bermuda azul, sem camiseta, boné preto virado para trás e grossa corrente prateada no pescoço. Enquanto segura a presa pelos cabelos ele dá um chute na região de um dos rins do travesti que emite um grito agudo e arca-se de dor, em seguida o travesti investe contra o garotão que tem pinta de lutador metendo suas unhas no rosto dele. O pitboy solta os cabelos para defender o rosto e tenta segurar os braços do travesti, que nesse momento consegue escapar, mas antes vê a mocinha gorda caída no chão levando chutes dos outros quatro. A prostituta conseguiu escapar ilesa. O travesti corre perseguido pelo predador que berra – “vou te matar, seu viado desgraçado, você arranhou meu rosto, filha da puta”.

No chão, Maria Cecília não consegue se defender e jaz quase desacordada levando pontapés por todos os lados. Dos rapazes pode ouvir fragmentos de frases desconexas – “puta safada... biscate... gorda... feia... não vai nunca mais esquecer da lição... agradeça porque não vai morrer... paria inútil da sociedade...”. Os chutes não escolhem parte do corpo, os dedos sangram, o rosto se tornou uma massa disforme e vermelha. Os carros que passam buzinam, dão sinal de luz, mas ninguém pára. Um táxi diminui a velocidade a ponto de quase parar, mas um dos rapazes ameaça investir contra o carro, o motorista arranca para evitar um pontapé certeiro contra a porta do carro. O rapaz que foi arranhado pelo travesti o persegue por quase uma quadra, desiste e está de volta se juntando ao grupo que chuta impiedosamente e diz palavrões àquela que está caída embolada entre as pernas deles como se fosse uma bola disputada por moleques numa pelada em que parece não haver time, em que cada um joga por si.

De repente os rapazes abandonam Maria Cecília e correm para o carro, o rapaz que atacou o travesti, o de bermuda azul sem camiseta continua sozinho dando chutes no corpo da doméstica que geme caída no chão. Um deles grita de dentro do carro – “caralho, chega Oscar, vem, vai pintar sujeira”. O rapaz entra e o carro parte em alta velocidade.

Leandro vê pela TV o noticiário. Cinco rapazes foram presos na madrugada anterior acusados de espancar quase até a morte uma empregada doméstica em um ponto de ônibus. Há testemunhas que os reconheceram: um travesti que também foi agredido, mas conseguiu escapar e uma prostituta que escapou ilesa. Um taxista anotou a placa do carro e avisou a polícia. Eles foram presos na conveniência de um posto de gasolina enquanto compravam cervejas e outras bebidas. Na tela da TV a imagem dos cinco rapazes algemados com a cabeça baixa tentando esconder o rosto. Todos muito bonitos, sem camiseta, torsos visivelmente trabalhando em horas de academia, percebe-se que se trata de rapazes da classe média alta. Leandro fica estarrecido quando reconhece um deles, o que está de bermuda azul é Oscar. O telefone toca, atende. É Nico marcando para vir trazer a informação encomendada. Na TV Maria Cecília aparece saindo da delegacia acompanhada pelo pai, acabou de fazer o reconhecimento dos agressores e depor. Uma multidão de repórteres segura microfones com as logomarcas de todos os canais e faz perguntas, os fotógrafos tiram fotos do rosto cheio de hematomas. Maria Cecília ainda vai dar uma entrevista exclusiva para o Jornal Nacional e no domingo seguinte o Fantástico faz uma longa matéria sobre a vida da doméstica e seu pai. O pai de Oscar que é advogado diz aos repórteres em defesa do filho que ele não é nenhum marginal, é um rapaz estudioso que ocupa o tempo com a faculdade e o estágio no escritório de advocacia. Leandro sabe que Oscar trancou o curso e não faz outra coisa além de malhar.